Inquietações II - Parte I
“Tudo começou ao terminar a primeira Grande Guerra. Ao regressarem à América, os soldados que combateram na Europa mostram-se exigentes, querem cerveja, uísque, rum, que sempre tiveram em abundância nos meses difíceis. (...) os empregados e os operários juntaram dólares de que querem agora gozar. E haverá melhor maneira de os gastar do que com jogo, mulheres e álcool? Por todos os lados, a partir de 1918, abrem "saloons"¹ e "speakeasies" , onde se encontra tudo o que se deseja, desde que gaste sem contar. A polícia mostra tanto maior compreensão quanto mais generosos são os patrões das casas.
(...)
Há muito tempo, no entanto, que nos Estados unidos há movimentos e associações puritanas lutando encarniçadamente contra o alcoolismo. Já no primeiro quartel do século XIX apareceu a proibição nalguns Estados. (...) A maior parte dos estados proibicionistas inscreveu na própria constituição estadual, geralmente por meio de um referendum.
_________
1 “Saloon”, mistura de taberna e de casa de jogo, sempre com mulheres.” ¹
Quando comecei a ler o livro do qual extrai o excerto acima, vi que era uma boa oportunidade para explorar um pouco o assunto “referendo do dia 23” e, mais uma vez, apetecer meu sanguinolento e estrênuo intento de montar o que chamei de “teoria do poder dominante” (ver o post Inquietações I). Para tal, dar-me-ei a uma analogia histórica que julgo absolutamente pertinente.
A partir de 16 de Janeiro de 1920, pela emenda constitucional número dezoito, o álcool estava proibido nos Estados Unidos. Decorre dessa proibição o desencadeamento de um dos ciclos de crimes mais extraordinários jamais vistos na História. Surgiram as gangs de Chicago, cuja figura-mor foi Capone, o “Scarface”. Inúmeras fortunas foram feitas às sombras da proibição do álcool, porquanto a América não deixou de o consumir por causa disso. Como se não bastasse, ao álcool agregaram-se outras atividades como a prostituição, jogos de azar, etc. E uma questão passava a ser insistentemente feita: de onde promanava esse álcool? André Valmont responde que no contrabando e no fabrico em destilarias e cervejarias instaladas no próprio país.
Eis que se nos impõem um referendo, no qual deveremos responder se somos a favor ou contra a proibição da comercialização de armas de fogo no Brasil. Iremos às urnas dia 23.
Caso digamos “Sim”, temo pelo que poderá acontecer. Embora já seja temerosa a nossa atual situação de insegurança pública. A meu ver, ninguém que tenha vontade e disponha de dinheiro suficiente deixará de comprar uma arma, não obstante a proibição do comércio. Dar-se-á ensejo a um aumento vertiginoso do contrabando de armas e do fabrico em casas de armas clandestinas, tal qual se fazia com o álcool na América dos gângsteres. Poderemos fazer um Beira-Mar tornar-se um malfeitor da estirpe de Al Capone; poderemos fazer do Rio de Janeiro (a Cidade Maravilhosa!) uma Chicago dos Loucos Anos 20; poderemos fazer da Colômbia uma grande fornecedora de armas por nossas extensas fronteiras, da mesma maneira que o Canadá tornou-se um grande fornecedor de uísques aos Estados Unidos pelas imensas fronteiras ianques. Aliás, supor uma rede de comércio como esta não é absurdo: armas da Al Qaeda por cocaína das FARC; armas das FARC por dinheiro sujo do tráfico no Complexo do Alemão. E o Narcoterrorismo inflado com isso! Ao som do batidão carioca! Este, com função semelhante ao jazz, que encontrou solo fértil nos “saloons” de Chicago.
Caso digamos “Não”, não haverá alteração da situação atual. Ter-se-á gastado seis centenas de milhões de reais (corrijam-me se o número não for esse) para deixarmos legalizado o comércio, obviamente, para os idôneos. Pode parecer, para mentes mais incautas e extasiadas pela “campanha do sim”, uma temeridade, uma renúncia ao direito à vida; mas se me configura uma prudência necessária.
Mas, não fiquei circunscrito à massacrante pugna “campanha do sim” versus “campanha do não”. Pus-me a uma apreciação etiológica desse referendo e cheguei a conclusões insólitas.
A Lei Seca norte-americana deu mostras inequívocas de que o óbice legal ao consumo de um produto que, sabidamente, não deixará de ser consumido, não obstante o entrave normativo, traz conseqüências drásticas para a sociedade. Esta experiência deixou a lição de que se deve refletir diante de uma situação que toma proporções insustentáveis dentro da sociedade e que não se deve deixar levar a situação com automatismos intempestivos. Em nosso caso específico, a feitura uma regulamentação assisada, a qual determine quem pode ou não possuir, comprar e/ou portar armas, adjungida uma fiscalização eficiente que conferisse uma eficácia decente às normas, excluiria a necessidade de se proibir o comércio de armas.
Isso é tão óbvio que até eu percebi! ;]
(A propósito, interessante a lógica que se tem adotado aqui no Brasil: se temos problemas com armas de fogo, que se proíba o comércio delas; se o ensino Público não tem condições de concorrer com o Privado, que se forje a entrada de alunos da rede pública nas faculdades. Parte-se, assim, do mesmo princípio que manda você dar um tapa violento no aparelho televisor quando a imagem estiver ruim, ou desferir um chute voraz na CPU quando o computador travar. Este tema deverá ser tratado com mais vagar em posts pósteros).
Decorrem disso algumas questões: Por que motivo(s), ainda assim, far-se-á o referendo com tal questão? Aliás, por que um referendo?
Há algum tempo, sugeriu-se a realização de um referendo em que se decidisse pelo ingresso ou não do Brasil na ALCA. A eventual pergunta seria algo como: ”Você acha que o Brasil deve integrar a Área de Livre Comércio das Américas?”. Extrair-se-ia, então, por um escrutínio universal, a vontade da maioria dos cidadãos, a qual passaria a gozar de COMPLETA, INESCUSÁVEL e INVENCÍVEL tutela estatal, uma vez que caberá somente ao estado fazer cumprir a deliberação popular.
Porém, se supormos o “Sim” vencedor no referendo do dia 23, haveremos uma completa e inescusável, mas VENCÍVEL tutela estatal. Vencível pelo fato de o Estado, carente de ubiqüidade, não poder regulamentar as condutas humanas a todo instante, em todos os lugares. Significa dizer que há a possibilidade de se transgredir a norma oriunda do referendo que se aproxima! Eis um problema gravíssimo! Entendo que em todo e qualquer referendo as questões que tangem à exeqüibilidade da proteção do desígnio popular devem ser translúcidas. Se se é possível transgredir a vontade popular consagrada em um referendo, VILIPENDIA-SE a soberania popular! É RASGADO o artigo 14 de nossa Lei Fundamental!
Chegamos, finalmente, ao que considero ser o ponto alto desta Inquietação: qual o motivo de se levar adiante este referendo, a menoscabar, desta maneira, o abuso apontado acima?
Entendo que por trás da complexidade técnica que envolve a questão do referendo e da obscuridade acerca do cumprimento de uma eventual proibição, há, por parte das mentes que dominam, um interesse fuliginoso de desgraçar a manifestação da soberania popular por voto direto. Como? Um dia, pretenderão minar a soberania exercida diretamente com um discurso sofístico em que se pretenderá desgraçar esse exercício democrático pelo fato de haver sido relativamente INÓCUO no caso da proibição do comércio de armas. Ou seja, a partir da inexperiência do povo brasileiro nessas questões (afinal, não se está na Suíça) erigirão todo um sistema de repulsa à democracia exercida por sufrágio universal e direto.
Não divagarei acerca de interesses econômicos e/ou políticos, pois esses já permeiam coisas assim desde tempos imemoriais.
É o que vislumbro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
I - Uma coisa está certa para mim: a discussão sobre se morrerá menos ou mais pessoas com a proibição é infinitamente menor que a discussão acerca das origens e motivos da realização desse referendo. Pensemos.
II - Votarei 3! (brincadeirinha) Mas se fosse possível me esquivar desta crudelíssima dicotomização (Sim;Não) e votar por uma regulamentação séria, como propus ao longo do post, adoraria. Por força das circunstâncias e da obrigatoriedade do voto, votarei 1.
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1 - VALMONT, André; A verdadeira história do banditismo - A América em face das gangs; São Paulo; Otto Pierre, Editores, Ltda.
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Há muito tempo, no entanto, que nos Estados unidos há movimentos e associações puritanas lutando encarniçadamente contra o alcoolismo. Já no primeiro quartel do século XIX apareceu a proibição nalguns Estados. (...) A maior parte dos estados proibicionistas inscreveu na própria constituição estadual, geralmente por meio de um referendum.
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1 “Saloon”, mistura de taberna e de casa de jogo, sempre com mulheres.” ¹
Quando comecei a ler o livro do qual extrai o excerto acima, vi que era uma boa oportunidade para explorar um pouco o assunto “referendo do dia 23” e, mais uma vez, apetecer meu sanguinolento e estrênuo intento de montar o que chamei de “teoria do poder dominante” (ver o post Inquietações I). Para tal, dar-me-ei a uma analogia histórica que julgo absolutamente pertinente.
A partir de 16 de Janeiro de 1920, pela emenda constitucional número dezoito, o álcool estava proibido nos Estados Unidos. Decorre dessa proibição o desencadeamento de um dos ciclos de crimes mais extraordinários jamais vistos na História. Surgiram as gangs de Chicago, cuja figura-mor foi Capone, o “Scarface”. Inúmeras fortunas foram feitas às sombras da proibição do álcool, porquanto a América não deixou de o consumir por causa disso. Como se não bastasse, ao álcool agregaram-se outras atividades como a prostituição, jogos de azar, etc. E uma questão passava a ser insistentemente feita: de onde promanava esse álcool? André Valmont responde que no contrabando e no fabrico em destilarias e cervejarias instaladas no próprio país.
Eis que se nos impõem um referendo, no qual deveremos responder se somos a favor ou contra a proibição da comercialização de armas de fogo no Brasil. Iremos às urnas dia 23.
Caso digamos “Sim”, temo pelo que poderá acontecer. Embora já seja temerosa a nossa atual situação de insegurança pública. A meu ver, ninguém que tenha vontade e disponha de dinheiro suficiente deixará de comprar uma arma, não obstante a proibição do comércio. Dar-se-á ensejo a um aumento vertiginoso do contrabando de armas e do fabrico em casas de armas clandestinas, tal qual se fazia com o álcool na América dos gângsteres. Poderemos fazer um Beira-Mar tornar-se um malfeitor da estirpe de Al Capone; poderemos fazer do Rio de Janeiro (a Cidade Maravilhosa!) uma Chicago dos Loucos Anos 20; poderemos fazer da Colômbia uma grande fornecedora de armas por nossas extensas fronteiras, da mesma maneira que o Canadá tornou-se um grande fornecedor de uísques aos Estados Unidos pelas imensas fronteiras ianques. Aliás, supor uma rede de comércio como esta não é absurdo: armas da Al Qaeda por cocaína das FARC; armas das FARC por dinheiro sujo do tráfico no Complexo do Alemão. E o Narcoterrorismo inflado com isso! Ao som do batidão carioca! Este, com função semelhante ao jazz, que encontrou solo fértil nos “saloons” de Chicago.
Caso digamos “Não”, não haverá alteração da situação atual. Ter-se-á gastado seis centenas de milhões de reais (corrijam-me se o número não for esse) para deixarmos legalizado o comércio, obviamente, para os idôneos. Pode parecer, para mentes mais incautas e extasiadas pela “campanha do sim”, uma temeridade, uma renúncia ao direito à vida; mas se me configura uma prudência necessária.
Mas, não fiquei circunscrito à massacrante pugna “campanha do sim” versus “campanha do não”. Pus-me a uma apreciação etiológica desse referendo e cheguei a conclusões insólitas.
A Lei Seca norte-americana deu mostras inequívocas de que o óbice legal ao consumo de um produto que, sabidamente, não deixará de ser consumido, não obstante o entrave normativo, traz conseqüências drásticas para a sociedade. Esta experiência deixou a lição de que se deve refletir diante de uma situação que toma proporções insustentáveis dentro da sociedade e que não se deve deixar levar a situação com automatismos intempestivos. Em nosso caso específico, a feitura uma regulamentação assisada, a qual determine quem pode ou não possuir, comprar e/ou portar armas, adjungida uma fiscalização eficiente que conferisse uma eficácia decente às normas, excluiria a necessidade de se proibir o comércio de armas.
Isso é tão óbvio que até eu percebi! ;]
(A propósito, interessante a lógica que se tem adotado aqui no Brasil: se temos problemas com armas de fogo, que se proíba o comércio delas; se o ensino Público não tem condições de concorrer com o Privado, que se forje a entrada de alunos da rede pública nas faculdades. Parte-se, assim, do mesmo princípio que manda você dar um tapa violento no aparelho televisor quando a imagem estiver ruim, ou desferir um chute voraz na CPU quando o computador travar. Este tema deverá ser tratado com mais vagar em posts pósteros).
Decorrem disso algumas questões: Por que motivo(s), ainda assim, far-se-á o referendo com tal questão? Aliás, por que um referendo?
Há algum tempo, sugeriu-se a realização de um referendo em que se decidisse pelo ingresso ou não do Brasil na ALCA. A eventual pergunta seria algo como: ”Você acha que o Brasil deve integrar a Área de Livre Comércio das Américas?”. Extrair-se-ia, então, por um escrutínio universal, a vontade da maioria dos cidadãos, a qual passaria a gozar de COMPLETA, INESCUSÁVEL e INVENCÍVEL tutela estatal, uma vez que caberá somente ao estado fazer cumprir a deliberação popular.
Porém, se supormos o “Sim” vencedor no referendo do dia 23, haveremos uma completa e inescusável, mas VENCÍVEL tutela estatal. Vencível pelo fato de o Estado, carente de ubiqüidade, não poder regulamentar as condutas humanas a todo instante, em todos os lugares. Significa dizer que há a possibilidade de se transgredir a norma oriunda do referendo que se aproxima! Eis um problema gravíssimo! Entendo que em todo e qualquer referendo as questões que tangem à exeqüibilidade da proteção do desígnio popular devem ser translúcidas. Se se é possível transgredir a vontade popular consagrada em um referendo, VILIPENDIA-SE a soberania popular! É RASGADO o artigo 14 de nossa Lei Fundamental!
Chegamos, finalmente, ao que considero ser o ponto alto desta Inquietação: qual o motivo de se levar adiante este referendo, a menoscabar, desta maneira, o abuso apontado acima?
Entendo que por trás da complexidade técnica que envolve a questão do referendo e da obscuridade acerca do cumprimento de uma eventual proibição, há, por parte das mentes que dominam, um interesse fuliginoso de desgraçar a manifestação da soberania popular por voto direto. Como? Um dia, pretenderão minar a soberania exercida diretamente com um discurso sofístico em que se pretenderá desgraçar esse exercício democrático pelo fato de haver sido relativamente INÓCUO no caso da proibição do comércio de armas. Ou seja, a partir da inexperiência do povo brasileiro nessas questões (afinal, não se está na Suíça) erigirão todo um sistema de repulsa à democracia exercida por sufrágio universal e direto.
Não divagarei acerca de interesses econômicos e/ou políticos, pois esses já permeiam coisas assim desde tempos imemoriais.
É o que vislumbro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
I - Uma coisa está certa para mim: a discussão sobre se morrerá menos ou mais pessoas com a proibição é infinitamente menor que a discussão acerca das origens e motivos da realização desse referendo. Pensemos.
II - Votarei 3! (brincadeirinha) Mas se fosse possível me esquivar desta crudelíssima dicotomização (Sim;Não) e votar por uma regulamentação séria, como propus ao longo do post, adoraria. Por força das circunstâncias e da obrigatoriedade do voto, votarei 1.
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1 - VALMONT, André; A verdadeira história do banditismo - A América em face das gangs; São Paulo; Otto Pierre, Editores, Ltda.
5 Comments:
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Primeiramente queria dizer que o comércio de álcool movimenta muito mais capital que o de armas, e que há muito mais pessoas interessadas no inebriante poder etílico que no letal poder bélico. É bem verdade que surgirá um comércio paralelo, mas acredito que não tão poderoso. Eheheheh.
Acredito também que o bandido quando vai assaltar um carro ou uma casa não pensa se naquele carro ou casa há arma ou não. Ele simplesmente vai preparado para tudo. Concluo que com a proibição do comércio... haverá uma redução de acidentes domésticos e de roubos ou furtos de armas de cidadãos "de bem". Isso já basta.
Lucas, meu amigo e comentador assíduo deste sítio humilde, é bem verdade que o comércio do álcool é mais vultoso que o de armas. Mas, observe que eu alertei para o que se agrega às proibições: se antes era a prostituição, agora é o narcoterror! É muito mais sério!
E ninguém me demove da certeza de que não haverá diminuição do número de armas com a proibição do comércio. Eu mesmo, em caso de vitória do "Sim", deverei comprar uma arma. Só para sentir o gosto de transgredir uma lei que me desagrada! Mas só quererei se vier do Paraguai ou da Colômbia!HOoHHOhoHOhoHOh
Valeu Luquinhas!
O que eu quis dizer é que há alguns exageros na postagem! Talvez achar isso seja decorrente do meu otimismo exacerbado...
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