
“Eu nunca me sentei para trabalhar sèriamente com dados abstratos; minhas invenções foram dirigidas através de uma série de provas, fortalecidas pelo bom senso e pela experiência. (
Lectures pour Touts, 1914)"¹
Nada mais antinefelibático! Palavras de um dos grandes homens do século XX: Alberto Santos-Dumont. Alberto foi, fora de qualquer questão, uma figura formidável. Ainda para quem o veja como nada mais que um
playboy da aerostação, não se lhe pode negar, sob pena de se cometer gravosa afronta à história humana, um dos mais aguçados sensos práticos jamais vistos. A obra dele é prova cabal de que o trabalho, sob o influxo de rígida disciplina (mais alguns bruxuleios intuitivos), é mais que o suficiente para o homem (literalmente) voar. E os “dados abstratos”? Esses ficam para os que, do chão, empolam-se numa retórica tão vazia quanto contraproducente.
“Foi a mesma história quando Alberto se voltou para os aeroplanos. Ele abriu as portas da Europa, e por elas embarafustaram as multidões. É inegável que êle não contribuiu muito para a ciência aeronáutica. Alberto era muito pouco sistemático. Mas com o
Demoiselle êle construiu o primeiro avião leve do mundo, e um dos mais seguros que jamais se construiu. Nunca morreu alguém com um
Demoiselle. Este aparelho é também um belo exemplo de sua outra grande contribuição: as lições de leveza e simplicidade, que todos os engenheiros deverão ter sempre em mente, com a máxima ênfase. Aliada a esta simplicidade de concepção, Alberto apresentava também um senso direto de ação. Num mundo excessivamente cheio de comitês e comissões, são necessários mais Santos-Dumonts, pessoas que se movem e levam algo adiante, fazendo alguma coisa, mesmo errada, ao invés de tergiversarem em deliberações e debates intermináveis. O nº 14
bis pode ter sido ter sido alvo de algumas observações pouco benévolas, mas nada roubará sua glória.”²
Que alguém voaria na Europa (pouco tempo) depois de Alberto é óbvio e inafastável. Mas, se as coisas se encontravam em tal estado, por que motivo o vôo de Alberto foi tão consecratório? Porque ele foi o primeiro (tudo bem, talvez os Wright devem ter voado mesmo em 1903, ou mesmo em 1905) a pilotar algo mais-pesado-que-o-ar que se haja afastado do chão por suas próprias forças. Só
Le Petit Santos voou naquele 23/10/1906 para os afortunados convivas dos campos de Bagatelle. Foi um vôo pequeno; mas, foi um vôo! O nº 14
bis era um híbrido teratológico antes de virar a máquina célebre a voar em Bagatelle. Mas, e daí?! Voou. E pronto.
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“Mil novecentos e seis
uma grande multidão
reunida em Bagatelle
suspende a respiração
ao ver um feito espantoso
do Pai da Aviação
Elevando-se no ar
com muita suavidade
pasmando a população
humilhando a gravidade
a vinte e três de outubro
no coração da cidade”³
Não teve ter sobejado a suavidade naquela elevação do nº 14 bis. Porém, pobre gravidade! Aviltou-se perante Alberto. Teve de resignar-se a uma vexatória constrição quando Alberto a encarou (tantas vezes!) com Baladeuse, ou com Demoiselle...
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As lições ficaram. Estas são inolvidáveis. As “comissões” e os “comitês” prendem-nos ao solo; a leveza, a simplicidade e o senso aguçado de ação nos credenciam a pegar carona nas asas de um nº 14 bis, ou no cesto de um Baladeuse. Lamentável apenas que o rumo dado à aeronáutica no campo militar haja colaborado para um fim indigno da vida e da obra de um tão ilustre nosso compatriota.
Eu e Dumont em um balão
Sobrevoávamos o Japão
Mais-leves-que-o-ar
Quando apertaram um botão
Uma ogiva de decepção
Mais-pesada-que-o-ar
Subjugada pela gravitação
Abrutalhou-se no chão
Em pouso nuclear
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1 - WYKEHAM, Peter; Santos-Dumont - O Retrato de Uma Obsessão; Civilização Brasileira; 1966; p. 214.
2 - idem; p.284.
3 - FERREIRA DA SILVA, Gonçalo; Santos-Dumont - Asas Para o Mundo; 2º ed. do autor (Cordel); p.5.